<font color=0093dd>Da tragédia familiar à esperança de um povo</font>
«Rumorosa, às sacudidelas bruscas, a ventania corre livremente. Em tropel desabalado arremete contra a empena, trespassa a telha-vã. Gemendo, arrasta-se pelo interior escuro do casebre. E demora, insiste, num ganido assobiado.
Seca e breve, como uma chicotada, a praga rompe dos lábios azedos da velha: - Raios partam este vento».
Com cinco bocas a alimentar e apenas um rendimento certo, o de Mariana, não é de admirar que Palma tenha optado pelo contrabando
É assim que começa o livro, referenciado aqui, muito sinteticamente, nos termos em itálico.
Escrito em 1958 «Seara de Vento» é, para vários estudiosos da nossa literatura, uma obra-prima do século XX.
É, seguramente, para o autor destas linhas um livro marcante, inesquecível, um livro cuja essência permanece viva decorridos cerca de 50 anos após a sua primeira leitura.
Continua viva a imagem de um texto enxuto, económico de palavras, sem adjectivos, frases curtas, circunscrito à essência das coisas.
Continua viva a imagem de um texto dramático, cujo dramatismo é acentuado pela omnipresença telúrica do vento, associado ao dramatismo que emerge de Bento, um rapaz deficiente, cujas repetidas expressões não vão além de «ó, nha mã!, Nha mã».
Continua viva a imagem de um Alentejo asfixiado pelo interesse convergente de Salazar ao poder dos agrários, acantonados, um e outro, de mãos-dadas, num pálio suportado pela repressão policial, por uma hierarquia católica hipotecada ao fascismo, pelos tribunais plenários e por uma comunicação social, salvo poucas excepções, telecomandada pelo lápis azul dos coronéis da censura.
É neste contexto, em finais dos anos 50 do século passado, tomando como base um acontecimento real ocorrido em 1932, que Manuel da Fonseca escreve «Seara de Vento», cuja figura central é uma família.
É o Palma, o chefe da família. É a Júlia, a companheira. É a Mariana, a filha. É o Bento, o filho deficiente. É a Amanda Carrusca, a sogra de Palma, mãe da Júlia.
Eram, também, dois filhos do Palma e da Júlia, que abalaram de casa em busca de alternativas e que nunca mais voltaram.
Era, também, e é aqui que tudo começa, Júlio Valmuro, o pai de Palma, pequeno proprietário, que tendo pedido um empréstimo e não tendo pago nos termos combinados ficou sem a sua propriedade em benefício de Elias Sobral, um grande agrário da região.
Sem terras não há searas.
Sem searas não há rendimento.
Sem rendimento suficiente aperta-se o cinto, abandona-se a manutenção do modesto casebre e deixa-se cair, por falta de actividade e pelas condições ambientais, o forno onde era cozido o pão que alimentava a família.
Está, assim, encontrado o ambiente social que levou Joaquim Valdemuro à sua auto-destruição: o suicídio.
Oiçamos Manuel da Fonseca:
«Certa tarde, a aparente quietação rasga-se, de súbito, nos gritos espavoridos de Júlia. Acudindo de longe, o Palma vem encontrar o velho dependurado na trave do casebre. Apenas o Bento, desde o princípio, assiste a tudo, sentado no terreiro. Tonto, baloiçando o tronco e sorrindo, não desfita o avô, já hirto, para lá da porta escancarada».
A tragédia mal começou.
O agrário que, por uma dívida não paga, retirou as terras a Joaquim Valdemuro é o mesmo que, passado pouco tempo, denuncia o filho deste, o Palma, por um roubo de umas sacas de cevada.
Embora este tenha, no posto da GNR, negado com veemência tal acusação não se livra de ficar preso durante vários meses, ou seja, entre a denúncia não fundamentada de um agrário e a defesa de um trabalhador inocente, a justiça optou por aquele, sem que, para o efeito, tivesse havido provas provadas de um crime não cometido por quem, injustamente, foi preso.
Acabada a pena e regressado à liberdade, Palma procura um emprego para poder sustentar a família.
Ele bem tenta.
Mas todas as portas lhe são fechadas, porque todos o olham com desconfiança. Mesmo as mais pequenas tarefas lhe estão interditas. Todos os grandes lavradores associam o nome de Palma à desonra, ou seja, pago um crime não cometido com vários meses de prisão há que acrescentar uma outra pena: o desemprego.
Este pesadelo dura dois anos, preenchidos com muitos apertos, período em que Mariana alarga a compreensão daquilo por que passa a sua família, para aquilo que é a vivência dos restantes trabalhadores rurais.
Oiçamos Manuel da Fonseca:
«Bondosa, tal como a mãe, ultimamente grande transformação se verificou no carácter de Mariana. Até há pouco tão calada e arredia, mal se dando conta da sua existência no casebre, discute agora com o pai e contraria-o, cheia de argumentos inesperados. Apenas a absorve um único assunto: a miséria dos camponeses.
Baixa, franzina, a segurança com que se expressa transfigura os seus dezanove anos. Parece mais velha. Escutando-a, estanhas palavras soam pela primeira vez aos ouvidos do Palma.
- Onde aprendeste tanta léria? Nada do que dizes é teu.Pois não. Mas isso que tem?
De quando em quando, Amanda Carrusca intromete-se. A conversa degenera logo em discussão, e o Palma afasta-se, meio aturdido com as ideias que a filha, dia a dia, lhe desvenda.
Indagando por aqui e por ali, descobre a origem daqueles pensamentos. Mariana convive de perto com uns tantos camponeses, que se reúnem, amiúde, para lerem e comentarem certos papéis chegados até eles ninguém sabe como.
Nenhum entrave põe às actividades da filha. Antes, pelo contrário, passa a ouvi-la com renovada atenção. Mas só aos Domingos podem falar mais demoradamente pois que, nos outros dias, Mariana sai ainda de noite e volta já com a noite fechada. Trabalha agora numa herdade a quase duas léguas de Valmurado, e é a única pessoa a ganhar para o magro sustento da família».
Com cinco bocas a alimentar e apenas um rendimento certo, o de Mariana, não é de admirar que Palma tenha optado pelo contrabando,
Esta forma do Palma obter rendimentos para sustentar a família não era aceite pela filha que preferia que o acesso ao emprego fosse sustentado numa reivindicação colectiva que agregasse os trabalhadores agrícolas da região.
A avó, a Amanda Carrusca, embora considere que «A gente não pode continuar assim», aplaudia a iniciativa do genro, questionando, assim, a neta: «Que perderá o teu pai em ir ganhar uns escudos para que haja comida nesta casa?»
Realizada, com sucesso, a primeira carga contrabandeada para Espanha, Palma recebeu cinco notas, parcialmente transformadas em meio quilo de lombo de porco, um quilo de toucinho, três pães e demais mantimentos para suavizar a fome da família, acumulada durante tanto tempo.
Enquanto Palma fazia as compras na tenda do José Inácio Mira ia ficando por este a saber que andava qualquer coisa a ser gizada porque «Há qualquer coisa de diferente nos homens. Parecem outros. Mesmo cheios de fome, andam para aí de cabeça levantada, num desafio».
Entretanto, Palma prossegue a actividade ligada ao contrabando cujos proveitos eram, prioritariamente, destinados quer a comprar comida, quer a renovar o stock de cartuchos destinados à caça aos coelhos, quer, ainda, a um futuro projecto de reparar o casebre, cujas janelas sem vidros e portas desengonçadas sofriam aparatosamente com o vento dominante da região.
O tempo passa.
Um dia, o agrário Elias Sobral passa pela venda do Mira, em cujo interior se encontrava o Palma, acabado de chegar de um novo salto a Espanha.
Senhor de si, o arrogante e astuto Elias Sobral dirige-se, na rua, ao dono da taberna nos seguintes termos:
«- Que é que tu me contas? Ao que parece, temos grandes novidades... O Palma, agora, lá arranjou artes de ganhar dinheiro... Mas adiante, creio que há mais e melhor...».
Mas o agrário não ficou por aqui.
Da insinuação dirigida ao comportamento de Palma passou a insinuar que Mariana estaria integrada na organização em curso de uma marcha dos camponeses à vila reclamando emprego e salários.
Foi o suficiente.
Do interior da taberna surge o Palma que agarrando o agrário pela aba da jaqueta o atira contra a parede. Elias Sobral consegue livrar-se e, de rompão, fugindo, dirige-se ao seu automóvel que se encontrava próximo.
A fuga acobardada do agrário alimenta a sua vingança.
Oiçamos Manuel da Fonseca:
«Velhos edifícios conformam a praça irregular, esconsa, onde fica o Posto da Guarda, casarão mal-assombrado, com grades nas janelas, como as cadeias.
(...).
Elias Sobral atravessa o átrio.
- Dá licença, sargento Gil?Faça favor.
A porta do gabinete cerra-se».
Congeminada a tramóia por parte do agrário e do comandante do Posto da GNR passa-se à acção.
Este dirige-se a casa do Palma para o prender, cuja ausência serve de pretexto para levar Júlia, para interrogatório.
Amanda Carrusca assume, indignadamente, a defesa da filha ameaçando o sargento Gil nos seguintes termos:
«- Se lhe tocas, o meu genro mata-te, cão».
Júlia, intimidada, sem ninguém de confiança junto de si, sujeita a um interrogatório perfeitamente armadilhado, acaba, julgando defender o marido, por confirmar que Palma estava envolvido no contrabando com Galrito e outros.
Era o que o comandante do Posto da GNR queria ouvir.
De imediato dá ordens aos seus subordinados para prenderem Palma, a que se segue o encarceramento de Júlia que, de um momento para o outro, se vê mergulhada «no negrume do calabouço» e destroçada por, involuntariamente, ter denunciado o marido quando o seu desejo era precisamente o contrário.
Não obstante, «a claridade baça» do espaço circundante permite a Júlia, toldada pelo desespero, que dispa a saia, rasgue uma larga tira em volta da bainha, enrolando-a, de seguida.
Depois, tudo é muito fácil. Basta amarrar essa improvisada corda ao pescoço para consumar o enforcamento.
Feito o enterro e apurado, por parte de Palma, o conluio entre o agrário e o comandante do Posto da GNR, tudo se lhe torna mais claro.
Munido da caçadeira dirige-se a casa daquele que motivou o suicídio do pai e da mulher e que o incriminou, injustamente, de um roubo de sacas de cevada.
«...a meio do terreiro, o Palma vê um vulto de homem passar por detrás dos vidros da janela, ao lado da porta.
Reconhece-o logo. Endireita-se, e leva a arma à cara.
Tudo demora apenas um instante. O aparecimento do vulto e o deflagrar do disparo são quase simultâneos.
Da boca escancarada, joelhos dobrados, Elias Sobral como que fica suspenso no ar. Súbito, estatela-se, de costas.
Gente corre dentro de casa. Ouvem-se exclamações, frases inacabadas. Passos soam, e Diogo surge de braço erguido, o rosto apavorado.
- Oiça! Pare! Eu!...O tiro corta-lhe o grito. Bate contra o guarda-lamas do carro, e cai para o chão dobrando-se lentamente pela barriga».
Palma, depois de atingir o agrário, atingiu o filho, sem saber que este fora o verdadeiro autor do roubo das sacas de cevada.
Estava consumado um ajuste de contas.
Faltava ainda um outro que se irá desenrolar junto ao seu casebre.
A filha e a sogra adivinhando a reacção da guarda e as suas consequências exortam Palma a fugir.
«- Fugir?!
O estalito dos canos da espingarda a fechar-se, soa. As duas mulheres erguem-se de medo.
- Que pensa fazer, pai?!...De pálpebras cerradas como se olhasse para muito longe, o Palma levanta a mão, a impor silêncio.
- Apaguem o lume – ordena ele, em voz baixa.Apaguem-no todo, e vão lá para dentro, para ao pé do moço».
A guarda avança.
Ao primeiro tiro de Palma corresponde o recuo de quatro militares da GNR que haviam cercado o casebre, um dos quais «...se atrasa, a coxear». Ficam, agora, por aqui.
No dia seguinte, à coronhada, a guarda força a porta do casebre que se abre.
«De arma à cara, o Palma assenta o joelho no chão, os cotovelos bem apoiados na coxa da outra perna.
Súbito, impelida à patada, a porta escancara-se.
Um estampido urra dentro do casebre. Alguém cai».
A guarda, novamente, recua, um deles ferido no braço, um outro é levado de charola a que se segue um período de tréguas até quase ao anoitecer, período em que:
«Um ruído quase imperceptível, vindo do alto, chama a atenção da Amanda Carrusca. Ainda pensa gritar, mas compreende que já não vai a tempo. Pela larga abertura de telhas retiradas cuidadosamente, aparece a cabeça e os ombros de alguém que desce, o cano da carabina na direcção do canto onde o Palma se encontra.
- Olha quem ele é... - cicia ela. - O sargento Gil...A inesperada aparição rasga-lhe um sorriso feroz na face escaveirada. Rápida, pega na arma, leva-a ao ombro apoiado contra a parede da lareira. O ribombar do tiro estremece o casebre.
Vê, ainda, por momentos, o medonho rosto sangrento tombar lentamente para trás. Ouve a pancada do corpo no terreiro, os gemidos estrangulados pelo estrebuchar da agonia. Ouve ainda a voz do cabo Janeiro, o passo dos homens que transportam o pesadíssimo fardo. Tudo isto Amanda Carrusca escuta, mas já de ouvido espalmado na frincha da porta e de cara transtornada por profunda alegria».
No dia seguinte, vindos da cidade, mais guardas e polícias dispõem-se ao assalto, não sem que antes um oficial, em jeito de tréguas, sugira a Palma que se renda ao que este retorquiu:
«- Eu não me rendo!
O oficial enruga os sobrolhos.
É isso que você quer?É.
Então, ao menos deixe sair os seus».
Após os filhos se terem afastado do casebre, Palma descobre Amanda Carrusca no fundo da lareira.
«-Ainda aí, mulher?
- Fico – rouqueja ela, inteiriçada. - Quero ficar contigo.Você não sabe o que lhe vai acontecer?»
O diálogo entre os dois é cortado pelo matraquer da metralhadora, a que se seguem tantas rajadas e tantos tiros quantos os necessários para trespassar o corpo de Palma de balas, fazendo-o tombar, desamparado, para dentro do forno destruído.
Entretanto o povo conflui para o casebre e, exaltado, tenta vencer a barreira formada pelos guardas.
«- Oiçam!
O grito obriga-os a levantarem a cabeça. No alto do cerro, junto da orla das estevas, Amanda Carrusca aparece, de mãos erguidas.
- Digam à minha neta! Digam-lhe que ela tem razão. Um homem só não vale nada».A exortação de Amanda Carrusca não foi em vão, porque, como refere Urbano Tavares Rodrigues: «...apesar de tudo, a tragédia, a «Seara de Vento», desfecha em esperança».
Fontes:
- Seara de Vento, Editora Ulisseia, 1958;Um novo olhar sobre o NEO-REALISMO, Moraes Editores, 1981